quarta-feira, junho 23, 2010

Sobre o processo de Desconstrução

Coloco aqui minhas considerações sobre o processo vivido até então, com a peça de teatro Fragmentos Tchekhov.

Existem diversas maneiras de se construir um espetáculo, uma delas, e talvez a mais comum, é a construção a partir da dramaturgia. No caso da obra citada, um início foi somado a outros, reunindo diferentes fragmentos até a sua composição final. 

A escolha do texto, a distribuição das personagens, os jogos teatrais, as experimentações em cena, o ator como elemento fundamental, a pesquisa cênica e tantas outras questões..., na verdade, não são o que quero descrever aqui. 

O processo a que me refiro, é o processo interior, que acontece dentro de cada indivíduo ao se deparar com o novo, o inusitado, ao surpreender-se com descobertas, que muitas vezes estiveram ali e só puderam ser vislumbradas quando confrontadas. 

Então mergulhem comigo, mas não me compreendam.
Compreendam a vocês mesmos.  

FRAGMENTANDO 

Destruir para construir. 
Essa é uma expressão 'chave' na peça, presente tanto na forma épica (de como a peça foi estruturada) quanto em sua própria dramaturgia. 
Para se destruir é necessário que exista algo já construído. Ou seja, para um fim é necessário um início. 

Pois bem, prazer Tchekhov. 

Um dramaturgo preocupado em falar de seu tempo, de pessoas comuns e acontecimentos comuns. Tchekhov questiona a inércia em "As Três Irmãs" através da inércia. As personagens que constituem a família demonstram bem esse papel, ao fazer Nada quando vêem todas expectativas desmoronando sobre seus sonhos, ao fazer Nada, antes mesmo que a expectativa surgisse. 
Ter expectativas pode parecer bom, mas se elas existem, e em grandes quantidades, corra e evite aquilo que pode se tornar cômodo - a espera. Ter expectativas, às vezes, pode provocar a inércia.
Perante tantas desilusões, as irmãs, o irmão Andrei e sua mulher Natacha, mergulham na solidão de suas expectativas, cada um com aquilo que não conseguiu, e talvez porque nunca tenham de fato tentado.

Somado à dramaturgia de Tchekhov, foram empregadas notícias cotidianas, de publicações em jornais e revistas. Discussões sobre um novo estudo sobre o câncer de mama, liberação da maconha nos Estados Unidos, proibição da caça às focas na Rússia e tantos outros acontecimentos declamados na peça, de maneira sucinta e tão somente, informativa. 

Outra peça chave são as cartas da atriz e esposa de Tchekhov, Olga Knipper, onde ela narra os ensaios, a preparação para sua estreia na peça "As Três Irmãs" e nos mostra coisas tão próximas da vivência em um espetáculo. A vivência que não se resume entre ator e espectador, mas sim a todo um conjunto de pessoas e questões que estão fortemente ligadas ao que queremos enquanto profissionais e ao que queremos pra vida. Há uma passagem em particular que me chama muito a atenção: "porque não fui capaz de defender o meu ponto de vista?". Quantas vezes nos deparamos encurralados com questões para as quais sabemos as respostas, mas na hora H, no momento crítico que é quando a questão é formulada, não sabemos respondê-la. E momentos depois, após a reflexão temos uma luz, uma espécie de esclarecimento quanto a questão, mas então, nada mais seria válido, pois já se teria passado a oportunidade ou o direito de resposta. Bem, depois de tantas vezes ter acontecido comigo, aprendi que de todo não foi perdido, pois pude pensar com calma e obter as melhores respostas, ainda que para mim mesma. Talvez, ter todas as respostas na ponta da língua seja apenas mais uma maneira de massagear o ego. Respirar, refletir e conviver é essencial.  

E por falar em convivência, surge o último (e também primeiro, entenda-se que não existe uma seqüencia lógica) tema abordado na peça. A desestruturação familiar. Praticamente todos os elementos são diretamente ligados a essa questão. Desconstruímos um texto, selecionamos as personagens que constituem a família e questionamos a desestruturação familiar. Aqui, foram empregados depoimentos particulares dos próprios atores. Foi engraçado. Em um determinado momento do processo o diretor (Samir Signeu) pediu aos atores que escrevessem sobre "família", o que viesse à mente. No momento da leitura, nos deparamos com a coincidência em dois sentidos: ao ler a carta de outro ator nos identificamos muito e ao ler as cartas em conjunto percebemos que todas, em sua essência, eram bastante incomuns. Por quê?! É bom quando somos confrontados com o imprevisível, somente depois de nos perguntarmos e de refletirmos poderíamos responder. Na minha opinião falar de família é como falar de Deus. Por exemplo: pegue cinco religiões, elas tentarão se explicar por diferentes apontamentos o que levará ao mesmo lugar - Deus. E quando falo em Deus falo sobre a essência, pois este pode ser representado por Buda ou pela própria alma. Então creio que, qualquer outro indivíduo que passasse pelo processo que passamos se identificaria com as mesmas questões, claro que, me refiro às questões de identidade, pois cada processo é único e o conceito que leva à desestruturação familiar é universal, pois se trata das relações humanas de convivência. 

A soma desses depoimentos aos fragmentos de Tchekhov tem um contraste muito forte, assim como as notícias. A verdade é que tudo é muito cotidiano, muito próximo à realidade atual, às perspectivas da nova geração. Tudo foi construído para o hoje que também será o amanhã, se assim continuar. A obra de Tchekhov, do século passado, é tão atual quanto as notícias e a realidade familiar apresentadas na peça. Nesses depoimentos a mesmice é questionada através da mesmice

Isso é Tchekhov.

Se você assistiu aos depoimentos e achou tudo muito parecido, então você captou a mensagem. 
Se você assistiu e se identificou com algum deles, então você também captou a mensagem.
Se você assistiu e não se identificou com nada e ficou incomodado, então você também captou a mensagem.

O que importa é que a transformação aconteceu, o incômodo, a percepção, a atenção. E para nós, que apresentamos esse trabalho sem a pretensão de agradar ou torná-lo "fácil' (comum), é extremamente importante ouvir o que vocês, espectadores, têm a dizer. E por isso, agradeço a todas as considerações que ouvi até então, foram todas críticas construtivas, que com certeza contribuíram e muito para a formação de todo um pensamento liberto, após tempos de reflexão.

O movimento aconteceu, e isso basta. Questionar é o ponto inicial para se formular a resposta, mas antes, é preciso se sentir incomodado e saber sobre o que se questiona.

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